Financeirização

Manobras suspeitas em leilão da Sabesp expõem os interesses sobre o controle da água

A Equatorial Energia pagou abaixo do preço pelas ações da Sabesp. Para especialista em água e saneamento o setor passa por um processo de financeirização mercadológica levando prejuízos à população

Jefferson Rudy / Agência Senado

Rosely Rocha | CUT

No filme “A grande aposta “, de 2015, baseado em fatos reais sobre a bolha imobiliária nos Estados Unidos que culminou com uma crise econômica mundial em 2008, um dos personagens “Ben Rickert”, que ajudou a denunciar as falcatruas dos bancos em hipotecas, interpretado por Brad Pitt, ao final do longa-metragem diz que o seu dinheiro está investido em ações de empresas de água. Embora não se saiba a veracidade sobre os investimentos do denunciante, cujo nome real é Ben Hocket, esse detalhe mostra como a água é um dos investimentos mais procurados pelo mercado financeiro e especulativo, num mundo que vive uma grande crise climática.

O especialista e assessor em água e saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU) e membro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Edson Silva, é enfático ao descrever o controle que o detentor da água e da energia poderá ter no destino de toda uma população.

“A água é o principal insumo da produção industrial e da agricultura, e ao controlar os sistemas de captação, tratamento e distribuição, quem controla a água, controla o insumo vital para vida. Ninguém vive sem água e as pessoas não terão para onde fugir, pois diferentemente de empresas telefônicas ou streaming, apenas uma vai controlar a água e o saneamento. Não dá pra trocar de companhia. É um monopólio e, por isso que cada vez mais o saneamento passa por um processo de financeirização mercadológica”, explica Edson.

Ele cita como exemplos, o fundo de investimentos, que detém a gigantes do saneamento no Brasil, a Aegea, controlada por um fundo de investimento de Cingapura e a BRK- antiga Odebrecht, controlada pelo fundo canadense, Brookfield.

“A privatização passa por processo de financeirização onde o interesse do mercado é grande, faz todo o sentido. E tem contradição com a crise climática que o mundo atravessa porque a água adquire ainda maior importância para a vida das pessoas, a vida do planeta. Por isso, em tempos de crise climática, o fortalecimento do controle público é estratégico, mas isso não está acontecendo”, diz Edson, se referindo à privatização da Companhia de Água e Esgoto de São Paulo, a Sabesp.

Hoje o mundo debate a transição justa, que é a necessidade de incluir a classe trabalhadora nas discussões de como será o novo modelo de consumo da humanidade que preserve o meio ambiente, mas é preciso também a construção de um modelo econômico seguro para a sobrevivência da humanidade, garantindo emprego digno e fim das desigualdades sociais.

Valor e interesses pessoais sob suspeição no leilão da Sabesp

Diante desse quadro é de se estranhar o interesse do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), em entregar o abastecimento de água e saneamento do estado nas mãos de uma empresa sem quase nenhuma experiência no setor.

Tarcísio de Freitas leiloando a EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia) | Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil

A Equatorial só opera no setor de saneamento em 16 cidades do estado do Amapá, quando ganhou a licitação em 2021 e tem um histórico de apagões e mau atendimento aos consumidores do Rio Grande do Sul. No ano passado o estado ficou mais de 10 dias sem energia elétrica, após tempestades. Ela foi multada três vezes pela Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs) pela incapacidade de manter os serviços em padrões mínimos.

De acordo com informações do Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul (Senge-RS), entre problemas que tornam a vida um caos para a população que é atendida pela Equatorial no Rio Grande do Sul estão a deficiência numérica de trabalhadores (ela demitiu em massa quando assumiu o serviço), a falta de qualificação dos quadros técnicos, terceirização de atendimento de campo e a lentidão no atendimento de demandas, principalmente depois de eventos climáticos.

Outra suspeição denunciada pela imprensa é a de que a atual presidente do Conselho de Administração da Sabesp, Karla Bertocco, era até 7 meses atrás integrante do Conselho da Equatorial e recebia anualmente cerca de R$ 1,02 milhão por ano. Hoje, como conselheira da Sabesp, recebe em torno de R$ 160 mil por ano. Chama a atenção também o fato de que Karla só renunciou ao cargo na Equatorial em 29 de dezembro, 23 dias após a privatização ter sido aprovada na Assembleia Legislativa do estado de São Paulo (Alesp).

É por isso, que é para se pensar os reais motivos que levaram a empresa de energia Equatorial a ganhar o leilão de privatização da Sabesp, como a única interessada no certame.

São muitas as camadas que levantam suspeitas sobre o leilão da Sabesp, que levaram o Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema) e o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), a entrarem, na segunda-feira (1º), com uma representação no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) contestando os R$ 6,87 bilhões – 11,6% abaixo do valor de mercado das ações- que a Equatorial pagou para se tornar sócia de referência da Sabesp ao adquirir 15% das ações companhia paulista. Como acionista, a Equatorial terá direito a indicar o CEO da Sabesp, o presidente do conselho de administração e três membros.

“Eu acho que esse um dos maiores crimes de lesa pátria que estado de São Paulo vai assistir. Não há nada que justifique essa privatização e o governador Tarcísio de Freitas o tempo inteiro mudou as regras do leilão de acordo com o interesse do mercado financeiro. Toda vez que os agentes privados detectavam algum problema que poderia atrapalhá-los, o governo fazia adequações ao projeto de venda”, diz Edson.

A Equatorial vai pagar pelos 15% das ações da Sabesp o equivalente a dois anos de lucros da empresa. Em pouco tempo ela terá todo o seu investimento de volta e o povo paulista é que arcará com os prejuízos
Edson Silva

Ele chama a atenção para os investidores privados que aproveitam o máximo do potencial das empresas públicas e vão subtraindo lucros em cima de lucros e negligenciando os investimentos para depois de um tempo abandonarem essas empresas.

A direção da Equatorial divulgou na última terça-feira (2), segundo o jornal Folha de São Paulo, uma apresentação a investidores na qual diz que deve privilegiar a distribuição de lucros aos seus acionistas, e para isso cortará “gastos”. Ou seja, é a demissão de trabalhadores e o sucateamento dos serviços prestados.

Enquanto as empresas privadas precarizam e pioram as condições de trabalho, elas pagam altíssimos salários os seus dirigentes.

Uma publicação do Ondas mostra a diferença salarial entre os executivos de empresas privadas no setor de água e saneamento e das empresas públicas, em 2022.

O primeiro quadro são os salários dos CEOs das empresas privadas.

Obs. Valor do salário mínimo de 2022: R$ 1.202,00 | Reprodução

Este último quadro contem os valores dos rendimentos dos gestores de estatais.

Obs. Valor do salário mínimo de 2022: R$ 1.202,00 | Reprodução

A Sabesp é a maior empresa de água e saneamento da América Latina e quinta do mundo com 50 anos de experiência no mercado cujo patrimônio se constituiu com dinheiro público de empréstimos feitos junto a instituições públicas como a Caixa e o BNDES, e mesmo os empréstimos realizados no exterior foram pagos com dinheiro da população seja na conta de água, seja em impostos ao governo.

“Querem que todo esse patrimônio construído com esforço público seja entregue ao setor privado”, critica.

Atuação da Sabesp como empresa pública no RS

Exemplo concreto de como a atuação de uma empresa pública é diferente, ocorreu durante as enchentes no Rio Grande do Sul. Enquanto a Aegea, que comprou a companhia de água do estado, a Corsan, nada fez para ajudar a população local, a Sabesp enviou 500 trabalhadores e equipamentos essenciais para a normalização do abastecimento de água.

“Em casos de graves enchentes o sistema de produção de água imediatamente é afetado até pela falta de energia necessária para o funcionamento de bombas e outros equipamentos”, explica o assessor da FNU.

Nessas tragédias as empresas públicas deixam os lucros de lado porque a solidariedade se sobrepõe a outros interesses, o que não ocorre com empresas privadas
Edson Silva